Parte I


Sete anos depois da primeira incursão pelos rastos e pegadas de Rawet, pelo Plano Piloto, pelas veredas periféricas, por Sobradinho, Haifa, Núcleo Bandeirantes e Tel-aviv, encontro-me outra vez diante da singela sepultura 162, da quadra 219, no cemitério em forma de caracol, engendrado por Niemayer. 
Mesmo vacinado contra todos os misticismos, sinto que se olho muito tempo para o fundo da cova vazia, o vazio me retribui impiedosamente o olhar… Impossível negar que a essência do Rawet, não do Rawet defunto, mas do Rawet escritor, engenheiro, voyeur vagabundo das madrugadas brasilienses, ainda está, de alguma maneira, inscrita neste lugar… Corpo ausente que anima reminiscências de uma narrativa, de um diálogo e de uma história já dinamitada pelo tempo… Ocaso da idolatria pelas palavras… da torpe e impotente paixão pelas letras, que agora, uma a uma, se desgarram do papel apodrecido, colocando um ponto final no passado. Diante deste espetáculo, é necessário reconhecer, de uma vez por todas, que tanto a morte como a lápide, desonram e humilham… “… devia ser humilde, e foi humilde até à anulação. Devia ser justo, e foi justo até o desespero. E nessa sucessão de devia, tornou-se plasma informe nas mãos do mestre. E sobrava-lhe ainda a lição do orgulho quando descobriu o charlatanismo da humildade”. (Viagens de Ahasverus, 1970, p.38).
Impacientes e sabedores de que as mais poderosas influências nos chegam quase sempre através dos mortos, os vivos se empenham, outra vez, em exumar a opereta de signos e de conjunções rawetianas, bem como sua artilharia verbal voltada para a idiotia do mundo… História que, por Rawet, mesmo ensoberbecido com todos os elogios e com todas as teses a seu favor, talvez, desse tudo por absolutamente concluído, acabado e perdido… Não se disporia a sair da solidão e do isolamento em que se encontra há vinte anos, para retomar a mesmice dos cálculos matemáticos na edificação desta promíscua solidão urbana, pelas mesmas razões que não se debruçaria mais sobre seu antigo projeto literário… A reedição das novelas, dos contos e das Obras Completas, para quê? Se já nada pode interferir no mais absoluto de todos os exílios? Como judeu, conhecia muito bem o provérbio de sua raça, segundo o qual, um tolo pode jogar uma pedra na água que dez sábios não conseguem recuperar. Por isso, talvez, se limitasse apenas a lembrar que, na existência, tudo se resume a um sonho provisório e que, seja qual for nosso estilo de vida, “morre-se só, sempre só, morre-se a própria morte. Vive-se só, sempre só, vive-se a própria vida. Em qualquer circunstância…”
…Sim, é possível que a escrita não lhe provocasse mais nenhuma forma de êxtase, nenhum arrebatamento, nenhuma das antigas obsessões. Isto porque não havendo mais libido, já não há mais culpa, nem necessidade de vingar-se, de esclarecer o impossível, de alimentar a aleivosia que, comumente, nos faz aguardar séculos, esperar uma eternidade, para o momento de uma mísera e inútil vingança…  Digo isto, porque, tanto para o Rawet de infância suburbana e aparentemente desfigurada, como para o Rawet dos últimos tempos, parecia não sobrar muito, além de uma grave letargia depressiva e de algumas escassas e fugidias memórias, ou de Klimontov, ou dos subúrbios cariocas, lembranças mixadas às imagens do velho Cristo, com os braços já exaustos e decrépitos, encurralando diariamente a canalha… Rawet lobo… Rawet corvo de Torga, Rawet Ahasverus, Rawet bordeline… Rawet desvairado e trágico com um texto em iídiche no bolso… Se não freqüentava as soirées nos arredores do Palácio, e se mantinha à margem, era porquê, como Céline, sabia que a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina aquele que a carrega. Indignado com a mediocridade humana, ia driblando sua loucura e resmungando: “… a dupla experiência, a da burrice, e de quem escreve sobre a burrice, nunca me abandonou. Ao contrário, e por motivos diversos, tomou conta de mim, do meu corpo, e se transformou numa espécie de lente que me ajudou, e me ajuda, a procurar compreender o mundo…”.
Duas décadas depois de ter sido encontrado morto em Sobradinho, com uma tigela de sopa Knorr nas mãos, e no mais absoluto desamparo, não apenas Brasília, mas o país inteiro parece querer colocá-lo num pedestal e queimar incenso à sua irreverência. Mas, como insistir em enquadrá-lo num lugar-comum, sabendo, por um lado – como pregava Saussure -, que não somos, em nenhum sentido, os autores daquilo que fazemos e nem dos significados que expressamos na nossa escrita? E por outro, que por debaixo de todos os estilos, disfarces e performances que as pessoas de letras cultivam com tanto esmero, há sempre um oculto arsenal de substâncias e de aromas narcíseos para o futuro auto-embalsamamento? Indiferente a qualquer tipo de especulação, o Cristo de concreto do imaginário rawetiano continua lá, com seus braços descerrados sobre a balburdia sensual e culpígena de todas as cidades portuárias, indicando o óbvio aos rebanhos…

“… É o homem culpado pelo fato de viver? Interrogou o crucifixo. (…) Não insistiu ao perceber o rosto imóvel e sereno do crucificado…”[1]

Diante da cova que aos poucos vai sendo desfigurada pela erosão, insisto numa associação de idéias pouco espontânea… ela, desde sua trincheira natural, sempre que pode, retribue-me maliciosamente um olhar de ausência e também o consolo de que a espontaneidade não é grande coisa, já que qualquer imbecil pode tê-la. Um olhar de ausência! Ausência desse personagem que na roupa e nos gestos, encarnava o homem do iluminismo, mas que quando abria a boca ou quando escrevia, evidenciava o sujeito da pós-modernidade, com a identidade despedaçada: judeu branco, num universo mestiço; libertário, mas funcionário público de um vilarejo periférico; sujeito ora cartesiano e ora wildeano; freqüentador da alta burocracia estatal, mas também da galeria Alasca; macho, mas nem tanto; ateu, mas ainda preso às orações ouvidas ou rezadas nas sinagogas polonesas.
A tarde vai se inclinando lentamente sobre Brasília e com mais vagarosidade ainda sobre os retângulos das tumbas… Um cão curioso ziguezagueia por entre as azaléias, dois vasos japoneses quebrados e uma sombra móvel sobre um amontoado de granito. A lua, semelhante a uma foice, começa a ganhar brilho na cobertura das construções frenéticas e ordinárias desta urbe… Utopia que virou realidade… Alguns desses prédios foram calculados pelo autor de Alienação e Realidade… Quem o viu comendo de sua marmita, assentado no meio fio dos becos de Sobradinho, jamais adivinharia ou descobriria ali o Rawet calculista… engenheiro e homem de concreto que, desde 1957, aos 28 anos, já fazia parte da construção desta cidade. É só em meio às circunstâncias particulares da sua vida – lembrava Foster - que um homem é ele mesmo. De seus cálculos e dos de seu colega Joaquim Cardoso… será que um dia, ainda não testemunharemos uma hecatombe…? Um horror de ruínas…? Ainda ralhando sobre a questão da estupidez, insistia com os personagens de seu delírio: “… ampliada um pouco invadiu o domínio da idiotice, da vigarice, e se metamorfoseou em especulação e matéria para especulação…”.
Apoiado sobre a tampa do sepulcro ao lado, retiro da bolsa os livretos rawetianos, os recortes de jornal, os artigos de revistas, teses doutorais, fotocópias de livros que já não existem e vou fazendo uma releitura e dando um novo significado à rapsódia que a ele foi dedicada…

- O senhor Samuel Urys Rawet, foi sepultado aqui no Cemitério Campo da Esperança, no dia 26 de agosto de 1984, na quadra 219, setor A, sepultura 162, onde permaneceu até o dia 16 de setembro de 1989, quando foi exumado… -Informa me o gerente.
- Exumado?
- Sim, seu corpo foi exumado e transportado para o Cemitério Comando Israelita, no Rio de Janeiro.
- Porra, mas então não era um fodido qualquer!
- Alô, não entendi senhor…
- Desculpe, estou refletindo… Mas isto não pode ser verdade. Se era um escritor marginal, que chegou a vender uma casa para publicar seus livros… e se ainda por cima, havia cortado relações com a comunidade judaica, como é que foi resgatado pelos primos, cinco anos depois e sepultado no meio de todos aqueles beatos que ele tanto detestava? Foi transferido para onde mesmo?
- Para o Cemitério Comando Israelita do Rio de Janeiro. O senhor é parente dele?
- Não, nem o conheci… Estou indignado com esta notícia. Cemitério Comando Israelita… Não lhe parece um cemitério de militares, de soldados ou coisa parecida? Será que esse puto era espião de alguém? No pequeno silêncio que se instalou no rastro de minha pergunta, recitei, numa espécie de auto crítica e de consolo, três linhas do Barthes: “o touro vê tudo vermelho quando o engodo lhe cai sob o focinho; os dois vermelhos coincidem, o da cólera e o da capa…”. É que nestes últimos dias – continuei falando àquele estranho - me entusiasmei tanto com esse assunto, que resolvi arrancá-lo do esquecimento popular… Mas agora… como é possível que o tenham levado daqui? Não lhe parece uma afronta fazer isto com um morto? Principalmente quando este não era seu desejo, quando não deixou pedido algum por escrito, registrado em cartório e tudo o mais…
- Mas se o senhor nem o conhecia, como sabe que este não era seu desejo?
- Imagino! Ta na cara! É só ler duas ou três páginas de seu texto titulado Angústia e Conhecimento…
- Se eu fosse o senhor, analisaria melhor as coisas antes de falar. O senhor não me falou que o título de um de seus livros é Que os mortos enterrem os seus mortos?
- Sim, mas e daí..?
- Não sei, mas me parece que tem alguma coisa a ver entre esse título e sua exumação…
- Não tem nada a ver… Como lhe disse, ele havia se desligado da comunidade judaica… fazia questão de gabar-se de ter um temperamento de marginal solitário…[2]
- Ora, meu senhor… Não é possível que não saiba, e muito bem, que para desligar-se da história, das nossas raízes e, principalmente, de nossa cultura, não é bem assim… Da forma como o senhor está pensando, parece que o Rawet, como num passe de mágica, teria lançado sobre seus sentimentos, sobre sua identidade e mesmo sobre seus desejos mais incontroláveis, um imenso saco de sal e pronto! Será? As coisas não são bem assim…
- Devo ter me expressado mal. Não me referia, evidentemente, a desejos, nem a sentimentos… Mas ao rompimento implacável que parece ter havido entre ele e a comunidade judaica, foi uma espécie de racha ideológico… “como vocês pensam de uma determinada maneira sobre o mundo e sobre vocês próprios, e eu, Rawet, penso exatamente o contrário, tanto de mim como do mundo, não nos resta outro caminho senão a ruptura…”, algo assim, me entende…?
- É bom ir com calma… Um pesquisador tem quase obrigação de ser maior que seus traumas pessoais…
- Confesso que não entendi a insinuação… Rawet, num determinado momento, tendo a impressão de estar sendo vítima de sua própria chantagem afetiva, afirmava que “o judeu, a eterna vítima de perseguições injustas, o mártir do fascismo alemão, o horror dos campos de concentração etc, tudo isto o estava fazendo aceitar muitas coisas como uma espécie de desculpa para certos comportamentos, assim como o fazia aceitar muita coisa naquela base do imigrante pobre que chega, luta e vence. Hoje – insistia Rawet - já não sei distinguir bem o nazismo alemão do nazismo judaico…” Isto não lhe parece suficiente para compreender a idéia de ruptura?
- Talvez… Mas parece apenas um problema agudo de identidade…
- Seja o que for, devo dizer-lhe que estou chateado e frustrado! Sinto-me como um caçador que perde a presa. Coloque-se no meu lugar. Estou apenas no princípio de um longo trabalho sobre esse sujeito, com todos os livros e documentos sobre a mesa, estava certo de que estaria enterrado aqui e que poderia fazer uma foto inédita de sua tumba…
- Sinto muito senhor…
- Quem fez a exumação? E.. sua tumba está vazia?
- Quem o exumou foi sua família… Quando uma tumba é esvaziada, é imediatamente ocupada por outro corpo… O mercado funerário é mais ou menos como o mercado imobiliário… 
- Quem a ocupa hoje?
- Isto não posso informar-lhe….
- A não? Mas qual é o problema? Isto poderá causar-lhe algum transtorno?

O telefone é desligado, deixando no ar a sensação de que em qualquer iniciativa que se tenha neste país, sempre faltará alguma coisa… “…entre o vermelho e o azul faltava alguma coisa, entre o horizonte inclinado e a curva da mesa faltava uma linha, ou uma superfície, mas de quê, de quê?[3]


[1] Rawet, S. Viagens de ahasverus….  Idem, p. 36
[2] “Na verdade me sinto um solitário caminhante do mundo. Circunstâncias pessoais, rompimento de todos os vínculos familiares judaicos e suas adjacências, um bando de chatos…” In Gomes, Danilo. Escritores brasileiros ao vivo. Ed. Comunicação, MEC, p. 163, Brasília 1979.
[3] Rawet, S. Viagens de ahasverus…. Idem, p.55

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