Parte II



Ouvi falar de Rawet, pela primeira vez, no campus da UnB, ali na livraria do Chiquinho, numa tarde ensolarada, quando as meninas da filosofia estavam sentadas de pernas abertas junto às paredes, folheando Kant ou fingindo entender Derrida. Brinquinhos delicados nas orelhas e no umbigo, dentes com gotículas de saliva, o bico dos seios empinados na direção do poente… Uma delas depilava as pernas para passar o tempo, enquanto ouvia a história incestuosa da companheira, uma mulher quase albina, com sardas ao longo das costelas e um olhar de ciúmes venenoso. Pelo pouco que pude roubar daquela conversa e daquele excitamento, entendi que ela havia sido abusada e explorada sexualmente pelo padrasto, ainda quando tinha dez anos. Uma padaria, a boca do forno como um crematório que cuspia labaredas, uma mesa imensa e mal cuidada onde se misturavam latas de óleo, farinhas, facas, orégano, herva doce, pacotes de sal… Ali, antes das cinco horas da manhã, enquanto a mãe ainda estava ausente, era o local onde o velho padeiro, candidato a substituto paterno, tomava certas liberdades libidinosas com a enteada albina… Arrancava-lhe a vestimenta semelhante a um pijama, depois as calcinhas infantis sem nenhum cuidado e, a dois metros das labaredas que lambiam os tijolos, corria os dedos grossos e perversos, impregnados de farinha e fermento pelas pernas e pelo sexo daquela criança, enquanto com a outra mão, bolinava seu próprio órgão rígido e assustador. Depois, como se nada tivesse acontecido, ordenava que a menina se vestisse, esfregava as botas com raiva sobre o sêmen caído no cimento e assobiando, retirava uma fornada de pães franceses dourados, para lançá-los com habilidade num imenso caixão forrado com papel de alumínio. Quando a história chegou neste ponto, fui percebido junto a uma das imensas pilastras que sustentam o esqueleto do minhocão. Fiz tudo o que pude para disfarçar minha indiscrição, e aquelas duas mulheres confidentes, sentindo-se traídas, me olharam, primeiro, com uma espécie de acusação, depois, com uma sutil e saborosa cumplicidade.
Apesar do Bobbio, com seu recente livro sobre a Senectude ter tirado o tapete de muitos de seus asseclas; do Buber ter se transformado quase numa fuligem e do Chomsky, em sua última visita a Brasília não ter convencido quase ninguém, apesar desse clima melancólico que varre as fronteiras geográficas e psíquicas do planeta, dessa corrida depressiva dos professores em direção à aposentadoria, dos pentelhos e dos cabelos brancos que revelam a magnitude do naufrágio, apesar de tudo isto, a universidade, e ninguém se atreverá a negá-lo, continua sendo o melhor dos mundos… Respeito as pilastras futuristas e soberbas da UnB, com a mesma devoção que me entrego aos arcos seculares da mitologia sorboniana… Asa Norte e Saint Michel! E se foram muitos os energúmenos e os vivaldinos que cruzaram esses espaços levando no mais cafajeste de seu íntimo apenas projetos e planos privados, também foram muitos os que rastejaram por esses salões frios e anônimos com apenas um lápis e um pedaço de papel higiênico no bolso da camisa, para com eles programar uma bomba, ou rabiscar os pensamentos suficientes para detonar o universo…
Vozes histéricas. Quem falava dizia que Rawet havia vivido seus últimos anos quase em total isolamento. Protótipo do desassossego havia sido encontrado morto, sentado em sua cadeira de leitura, já em total estado de putrefação… Sobre sua obra literária, ninguém sabia dizer grande coisa, alguns clichês jornalísticos, alguns elogios inconseqüentes e nada mais. Não se conhecia os títulos, nem as editoras que os haviam publicado. Praticamente nada… germinava aqui e acolá a semente do mito… o mito do judeu errante e, por que não, do judeu maldito. No vai-e-vem de minhas indagações, alguém se arriscou a dizer que o escritor era intratável e que tinha, em sua retaguarda, uma história de loucura. Paranóia – disseram em coro. Bem, qual o judeu que não é paranóico? – pensei. E isto, talvez, porque -como dizia Sartre - para o judeu, não lhe resta alternativa exceto escolher a salsa com a qual será comido. Num dos textos rawetianos, uma frase sublinhada:

“… Choro, e espero que as lágrimas me humanizem um pouco e me livrem de muitas certezas…”.

Brasília, 33 graus! Umidade relativa do ar abaixo de 15. Qualquer semelhança com Bangkok é pura ironia! O plano da cidade, afinal, é um avião ou um morcego? Como é possível respirar num inferno destes? Os carros deslizam pela L2 como se fossem, de um momento para outro, entrar em combustão. Um caminhão de gás, um caminhão de água, uma mulher que conserta (conserta é com s ou com c?) o assento de cadeiras, tem as mãos deformadas pelo reumatismo.
-Fibromialgia me assegurou um especialista… mas, sabe como é, nesta tal de modernidade, todo mundo finge saber de tudo, mas ninguém sabe quase nada sobre doença alguma…

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