Parte VII


Fugindo do sol e do barulho infernal das cigarras, refugiei-me na biblioteca da UnB e eis que, numa de suas confusas prateleiras, descobri uma obra preciosa de Oswaldino Marques, onde ele faz, em umas seis páginas, uma crítica literária dos contos de Rawet. Em a Seta e o Alvo (Marques, 1957, pp. 145 a 158), Oswaldino, que, aliás, conviveu com Rawet antes mesmo dele mudar-se para Brasília, dá bons puxões de orelha em nosso personagem principal, mas depois, sem perder o profissionalismo, o cobre de elogios paternais… Falando especificamente de Contos do Imigrante, escreve: É um livro que, desde a frase inicial, fere uma nota grave, patética, que fica ressoando dentro de nós até a última página. Rawet é um desses poucos que se impõem logo ao nosso respeito. E dos que nos encorajam a atirar-lhes desafios que reservamos para os que têm fôlego… ”
- Meio lúcifer e meio anjo – o define um de seus poucos conhecidos brasilienses -, com seus cabelos grisalhos que cruzava a cidade falando consigo mesmo, com uma gaiola vazia sob o braço e recitando textos ainda não escritos. A impaciência… a indiferença… o desprezo por absolutamente tudo foi crescendo dentro daquele homem já visivelmente alucinado. Aparecia só em cuecas nos corredores do edifício em que morava… Os vizinhos o espiavam pelo olho mágico, ligavam para o porteiro e até para a polícia… Rawet lhes joga ovos… Ao delegado que o interpelou sobre esses atos pouco civilizados, confidenciou estar vivendo o personagem de um de seus contos…

“… A busca da ironia, talvez, essa quintessência florida e bem comportada de homens bem educados… A ironia como civilidade, como atitude digna da sabedoria diante do urro selvagem de uma expressão não se sabe de quê…[1]

Insisto nos jornais da cidade, e finalmente descubro, num deles, na página policial de 26 de agosto de 2004, ao lado do necrológio de Truman Capote, a notícia de sua morte. No escritório do cemitério, sem que ninguém obstaculize minha curiosidade, tenho acesso à sua ficha mortuária: atestado de óbito número 75888. Médico legista, R.M; motivo da morte, insuficiência cardíaca-senilidade. Endereço onde foi encontrado morto: Quadra 2, Conjunto C4, casa 51, Sobradinho DF. Pai e mãe, falecidos. Profissão, engenheiro. Nenhuma palavra sobre o literato, os livros, as idéias… Apaziguo minha indignação com um sarcasmo: desde quando para um médico legista, para os coveiros e para os burocratas em geral, ser escritor significa ser alguma coisa?

“… Não domino bem a língua, ainda. E dominá-la não é ser fiel a preceitos gramaticais. É manifestar espontaneamente o miolo da língua, suas raízes populares, na gênese simultânea da idéia e emoção da consciência… Conseguir me situar na literatura brasileira, como temática, foi horrível…”[2]

- Desconfiamos que havia alguém morto, pela quantidade de moscas… disse-me por telefone, a mulher que mora atualmente na casa onde Rawet foi encontrado morto.
A estrada para Sobradinho está congestionada de caminhões, carros e ônibus que soltam lavas por seus escapamentos… Entro à esquerda e vou direto à quadra 2, conjunto C4. O número 51 aparece soldado às grades da garagem. A avó que poderia dar-me informações só voltará mais tarde. Os vizinhos vão chegando, curiosamente, doentiamente. Uma mulher diz que o conheceu muito bem, mas diz dele o que todo mundo já sabe. Não se relacionava com ninguém, era um sujeito muito individualista que trabalhava a algumas quadras dali, na administração pública…
- A felicidade para ele parecia possível só estando recluso e sozinho… Detestava muita luz. De vez em quando o via pela janela, com seus óculos enormes atrás da chama trêmula de uma vela… Descobrimos que havia morrido, por causa das moscas azuis… Começou a aparecer muita mosca por aqui, daquelas moscas azuis, e ficavam pousadas nas portas e janelas, de onde saia o cheiro…
Fazia o relato com os olhos bem abertos, como se aquele assunto a incomodasse. Evidentemente, não deveria saber que, segundo a mitologia Persa, o princípio do mal penetra no mundo em forma de mosca… Que as moscas sempre foram relacionadas com a doença, a morte e com o diabo, e muito menos, que a palavra hebraica Beelzebub, significa senhor das moscas…
- Chamamos o corpo de bombeiros – continua - que arrombaram a porta e o encontraram morto, num sofá, com uma tigela de sopa Knorr nas mãos. Morto há quatro dias… Já em putrefação… Problema cardíaco… Andava sujo, não trocava mais de roupa, levava uma mochila nos ombros…

“… Um gesto. Um golpe. Um rosto deformado pela estupidez acumulada e se revelando em ironia e sarcasmo e golpe. Um rosto que já fôra humano e que agora nomeava as coisas de um outro modo, porque as coisas tinham um halo, traziam a dimensão da dor. Mas de uma ausência de dor, ultrapassada, máxima…[3]

- Vivia em total solidão. Deixou que cortassem a luz e a água… Mandou colocar carpete no piso, para poder caminhar a noite inteira, de um lado para outro, sem incomodar os vizinhos… Enquanto os que dormem – lembra Cioran - começam cada manhã um novo dia, para o insone só é possível o esquecimento, uma vez que noite e dia, suporta sem interrupção o mesmo inferno. Os bombeiros ficaram surpresos com a quantidade de tocos de velas e de pacotes de sopa Knorr que encontraram jogados pela casa… Sua pequena biblioteca, no quarto dos fundos, estava toda organizada, numerada, tais livros de um lado, livros tais de outro… Dizem que tinha problemas com a família, a ponto de devolver-lhes os presentes que recebia…

Quem ler Angústia e Conhecimento, encontrará este desabafo de Rawet nas páginas 17 e 18: “… Não me lembro de uma frase cordial dirigida a mim por pessoa da família. Fui sozinho ao Colégio Santa Teresa, freqüentei o preparativo, fiz o exame de admissão. No dia do resultado, fiquei surpreso, estava entre os primeiros colocados…  Quando entrei em casa, minha mãe não estava. Tinha sido internada em algum sanatório…”
O pessoal do hospital psiquiátrico ligou-me dizendo que não há prontuário nenhum do Rawet por lá. No departamento de arquitetura da UnB, onde teria dado algumas aulas, ninguém tem esse registro. Na delegacia de polícia de Sobradinho, por mais boa vontade que tenham demonstrado, não localizaram a ocorrência de sua morte. Enquanto vou anotando as desculpas do soldado de plantão, recito mais estes fragmentos rawetianos: “… Sonhei todos os sonhos. Delirei todos os delírios. Olho a pedra do meio-fio. Os nomes. As coisas. Nenhuma teoria da realidade equivale à minha realidade instantânea…”.
Refaço seus possíveis trajetos  por Brasília. As livrarias, os sebos, os inferninhos, os arredores do Hotel Nacional, o Conic, os antigos casarões do Núcleo Bandeirantes, a Esplanada dos Ministérios, a rodoviária, o ambulatório psiquiátrico, o cemitério e seu último local de trabalho na NOVACAP, onde sua pasta funcional é colocada a minha disposição. Uma anotação a lápis: falecido em 24 de agosto de 84. Nascido em 23 de julho de 1929. Engenheiro Classe B. Beneficiários, em caso de morte: Szapsa Rawet e Sura Rawet. Nome de três pessoas que não sejam parentes: Joaquim Cardoso, Obed. M. Cardoso e Renard Peres. Licença para tratamento de saúde: de 10/11 a 10/12/1978, e de 01/12 a 21/01/1979. E ultimas férias: de 11/10 a 09/11/1983. Quê teria feito nesse período? Os funcionários, ex-colegas de Samuel, indiferentes à minha presença, movimentam-se de um lado a outro apenas para não petrificarem-se sobre as mesas… Pelo clima do ambiente de trabalho, engenheiro calculista não deve ter feito a mais mínima falta… Na parede, sobre a mesa de uma das diretoras, um Cristo prateado de braços abertos, em sua antiga e reacionária rotina de apaziguar, sossegar e encurralar a tropa. É bem provável que tenha sido este ícone o inspirador da frase rawetiana registrada em Alienação e Realidade:”… é preciso que algum deus nos inspire. Mas não este que nos oferecem os que tudo sabem. Para estes só temos uma palavra. Merda![4]


[1] Rawet, S. O terreno de uma polegada quadrada, Orfeu, p. 47, Rio de Janeiro, 1969
[2] Rawet, S. Em entrevista a Danilo Gomes.
[3] Rawet, S. Abama, idem, p.65
[4] Rawet, S. Alienação e realidade, idem, p.62.

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