Parte VI


Quem cruza com Rawet no meio da quadra, na rodoviária, nos bares noturnos ou mesmo entre uma prateleira e outra das livrarias, dissimula o desconforto, finge que não o vê e foge. É isto a solidão. Um louco é sempre um espelho demolidor… Diante dele, ou ficamos cegos para preservar nossa intimidade ou piramos.
Desço até o bloco E da Quadra 103 sul. Por aqui todos devem tê-lo conhecido. Um louco todos conhecem. Olham de longe, acham graça de seus escândalos, achincalham seu sofrimento, espiam quando ele mija solenemente na caixa d’água, balança a mangueira e sai correndo puerilmente atrás de uma borboleta que plana… O sol batia de cheio na banca de jornal. Olhei de longe a fileira de janelas, tentando adivinhar em qual delas o contista poderia ter passado dias de sua vida. Um cachorro cheira obsessivamente o meio fio ao mesmo tempo em que uma velhinha sai da portaria do prédio empurrando um carrinho de feira.
A senhora mora aqui há muito tempo?
Ela me olha desconfiada.
- Por que o senhor pergunta?
Porque procuro alguém que tenha conhecido um antigo morador do apartamento 120. Como se chamava? Samuel Rawet… Judeu, escritor trabalhou na equipe do Niemayer, enlouqueceu… Andava por aqui, nestes jardins, em círculos, como um lobo, falando sozinho e, freqüentemente tinha conflito com quem cruzasse abruptamente seu caminho…
- Não… Não conheci esse moço… Não tenho notícias de nenhum louco neste prédio… O senhor deve estar enganado. De vez em quando aparecem uns bêbados, maconheiros e ladrões por aqui, mas loucos, graças a Deus, não…

“… De madrugada, após comemorar o primeiro livro publicado, se embebeda, e a última visão é o seu corpo de gigante no hospital do pronto socorro a correr dos médicos e a gritar que era um homem marcado…”[1]

O senhor conheceu o Rawet?
- Claro, sou porteiro deste prédio há mais de vinte anos, mas não tenho muito a dizer sobre ele. Era um sujeito muito fechado. Nunca o vi subir ou descer com alguém, fosse homem ou mulher. No último ano que viveu aqui, lá por 1983, já estava completamente nervoso. Atirava ovos pelos corredores, falava sozinho e parecia muito agressivo. Devia sofrer dos nervos e também de hemorróidas, pois de vez em quando suas calças estavam sujas no traseiro. Só quando levaram sua mudança para Sobradinho é que se pôde perceber a quantidade de baratas que havia em seu apartamento… Enquanto ele viveu aqui, creio que nunca foi internado. É só isto que sei dele… Depois que se mudou, não soube mais nada…
E eu que pensei estar na reta final… E agora? O cartório? A polícia? Os hospitais? Os jornais? Vou ao arquivo do Correio Braziliense e pesquiso no dia 25, 26, 27 de agosto de 1984. Nada. Será que sua morte foi ignorada? O pessoal do hospital de Sobradinho já me despistou dizendo que é quase impossível, depois de 13 anos, localizar algum dado sobre pacientes e muito mais ainda sobre cadáveres…
Águas lindas… Barragem do descoberto… Cem mil nômades começam a cagar na água que bebemos! E depois, quando tudo estiver contaminado? Beberemos cerveja respondem delirantes os alcoólatras. E nenhuma bebida simboliza mais do que essa a idiotia popular. Uma garrafa, duas garrafas, terceira garrafa, e eis que o otário se achando grande, com a bexiga inflada e os maxilares flácidos, começa a querer provar que é filho de Lucrecia Borgia… E o garçom é rápido, vai astutamente substituindo os cascos vazios, enfiando até merda derretida esôfago abaixo desses otários. Claro, que também dá lá seus tragos, mas o faz escondido, tanto para matar a sede como para ficar à altura ou igualar-se em baixeza àqueles fanáticos. O bar inteiro vai se liberando, na proporção exata das garrafas vazias. Tanto os enrustidos como os descarados vão fazer sodomia no banheiro enquanto elas riem por nada, fingem dar longos beijos de língua em seus parceiros heterossexuais, entender de política e até arriscar uma discussão filosófica… A madrugada surpreende esse bando de cretinos literalmente caídos no meio das garrafas, que se apalpam, que babam sobre os cacos de vidro, que começam a mergulhar na depressão… Só os garçons e o dono do bar ainda estão sóbrios. Separam sutilmente as notas de cinqüenta, as de cem, os cheques ao portador, as moedas… Depois, vão boçalmente apagando as luzes, expulsando os retardatários e, se for necessário, chamando a polícia para poder fechar as portas…
- Me larga… Me larga! Não gosto de polícia! O senhor sabe quem sou eu? Ai meu pai do céu! Você está me machucando! Sou filho de Lucrecia Borgia… Assistindo na madrugada, a apoteose desse melancólico espetáculo, o engenheiro Rawet diagnosticaria de imediato: “… Esse monstro de sensibilidade, amoral, anárquico, caótico, vítima de traumas e humilhações, mergulhado numa aspiração indefinida, sempre atacado de uma diarréia verbal…”[2]


[1] Rawet, S. Abama, idem, p.43
[2] Rawet, S. O terreno de uma polegada quadrada, Orfeu, p.46, Rio de Janeiro, 1969

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