Parte III


Atravesso a cidade com as palavras paranóia e fibromialgia insistindo obsessivamente nos portões de minha mente. É incrível nossa necessidade de lançar rótulos e diagnósticos para todos os lados. Quanto mais nossa identificação com o outro nos ameaça, mais precisamos estigmatizá-lo, tentar destruir fora, aquilo que nos ameaça desde dentro. Como lembrava Andréa Sabatini: “ la víctima propiciatória es necesaria como un simbolo del mal que resulta cómodo expulsar del orden social y que, mediante só razón de ser, confirma la bondad de los restantes miembros de la comunidad. Para los animales depredadores de la selva, la regla de vida es matar o ser matado. Para el ser humano depredador en la sociedad, la regla de vida es estigmatizar o ser estigmatizado…”  Tomo a direção do Arquivo Histórico. A minha esquerda o prédio da polícia federal, depois, um pouco mais adiante, do lado direito, os monumentos singelos do cemitério, com suas cruzes brancas ou esmerdeadas por algum alcoólico suicida.
Campo da Esperança! Que nome cínico para lugar tão sem esperanças! Numa dessas covas mal cavadas, no meio de raízes venenosas do cerrado, já esteve o autor de Abama. Na primeira das 82 páginas desse livro, Rawet cravou um pensamento de Valery: “…et chaque homme traîne après soi un enchaînement de monstres qui est fait inextricablement de ses actes et des formes successives de son corps.” Todo mundo tem obsessão por citar no rodapé de suas obras, idéias e pensamentos dos figurões de outrora… Eu, em particular, não sei viver sem essa perversão. E, por mais paradoxal e desprezível que pareça, sinto que o faço não apenas para exibir-me, mas para rechear de dinamites a minha própria obra… Percorro apressado as livrarias e os sebos da cidade em busca dos textos de Rawet. Nada. (menti para a pessoa do cemitério, quando disse que estava com todos os seus livros sobre minha mesa). Será que inclusive os livreiros o consideram, como a professora da tese, fascinante, mas “um autor menor?”

“O que me fascina em Rawet é a coragem intelectual desse homem extremamente inteligente, em fazer esta exposição visceral, sem se preocupar com os cânones estéticos (…) Ele sabia de sua estruturação psicótica. Era contra a psicanálise, mas se auto-analisou através de sua escrita. A página branca foi seu espaço salvador… Encarar a ficção de Rawet é descer aos infernos. Rawet colocou o psicótico nas veias da literatura brasileira.”[1]

Vasculho bibliotecas, entrevisto livreiros, vendedores de óculos, porteiros de prédios, atendentes psiquiátricos, costureiras, sapateiros, os vigilantes do setor hoteleiro. Divulgo meu projeto aos quatro cantos da cidade, fantasio descobrir estórias que sei de antemão não passarem de fantasias. Como não sou literato, não é sua obra em si que me interessa, mas sua vida de pensador, as engrenagens que moviam seu imaginário. Um sujeito errante. judeu, escritor, forasteiro, depressivo e, ainda por cima, que foi encontrado morto… isso mexe com o imaginário de qualquer um. Como é que alguém nasce em Klimontov e acaba seus dias numa cidade como esta, onde os pedestres já se acostumaram a desfilar medrosos, sobre o meio fio das calçadas, se não quiserem ser atropelados por uma madame embriagada ou por um burocrata cujos negócios não deram certo? Por outro lado, fico me perguntando como foi possível que um homem como ele, vindo para cá com status de engenheiro calculista, tenha morrido solitário e pobre, quando se sabe que, naquele momento histórico (como até hoje), todo mundo de seu nível, metia descaradamente as mãos na cumbuca do Tesouro Nacional, e investia nos filhos, nas amantes, nas contas estrangeiras, no harém etc, e que, quando sabiam escrever, pagavam grandes tiragens de seus textos, compravam resenhas jornalísticas e bancavam suas traduções para vários idiomas? 
Tenho finalmente acesso a um de seus livros: Diálogo. Na página 5 uma citação fulminante de Heine:

“Torturado vou morrendo, a raiz de minha vida está danificada. Ai, isto vem de um pontapé que me deram no coração”.

-Bom dia, doutor! Mandaram-me aqui porque estou podre! Meus pés, meus seios, minhas mãos, a boca… tudo em mim que é ligado ao prazer fenece. E mais: a culpa propaga-se como uma tempestade pelos atalhos de minha consciência. E o pior: acabo de descobrir que, de alguma maneira, amo as algemas que me atam… Tenho cura? Justifica-se minha insistência?
O doutor sou eu. Um frio de catacumbas invade minhas artérias. Sei muito bem do que aquela mulher está falando. Mas por quê quase só mulheres? Em sua bolsa duas caixas de lexotan, a bíblia e um phallus sintético. Ordem e Progresso! O presidente aparece com a família real no meio da pastagem do palácio, enquanto, na periferia da cidade, a insanidade mental detona silenciosamente a medula popular. Eis aí o conluio entre vítimas e opressores. Seria possível não ver esse espetáculo como o avesso satânico de nós mesmos? E sendo assim, onde buscar o óbvio? Resposta rawetiana: no mundo.

“A rua, a praça, o bairro, a cidade, a estrada, o bordel, o parque, o cinema, o hotel de luxo, a hospedaria de cubículos sem luz nem ar, onde mal se fica de pé, porque de um pavimento fizeram dois, o mundo é o ônibus, o saguão de um edifício, uma sala de visitas de madrugada, um mictório, um consultório, um gabinete bem atapetado. O mundo é a exaltação, a alegria, o prazer, o gozo, o medo, o terror, a iminência da morte, a degradação, a humilhação, a euforia, a perda, a conquista, a solidão, calor humano, desagregação, reintegração, timidez, arrogância, covardia e heroísmo no mesmo gesto no mesmo instante, o mundo é tudo isto, muito mais, e é essencialmente anonimato…”[2]

O mundo é essencialmente anonimato! Impossibilidade de fazer vínculos, de situar-se, de familiarizar-se com a vida… Um lugar onde há dois tipos de solidões; “a solidão do monólogo e a solidão do diálogo”. Se como escritor os críticos profissionais chegaram a compará-lo a Dostoievski, a Borges e a Beckett, o Sujeito Rawet, como pessoa, com sua doença e seus delírios paranóicos, foi reduzido a um número de prontuário e a um bosta.

“Um dia me interessei pela loucura, a clínica, não a romântica, e verifiquei, enquanto me achava num local moral e sexualmente não muito recomendável, que o problema fundamental da loucura, em qualquer grau, é o problema fundamental da filosofia, qualquer que seja.”[3]

Apesar de dizerem que Rawet internava-se voluntariamente sempre que pressagiava a possibilidade de um surto, tinha sérios problemas teórico-ideológicos com as áreas da psiquiatria, psicologia e psicanálise. Como judeu, estrangeiro, errante, vagabundo, descendente de um grupo étnico que está perambulando desde a diáspora, detectava com facilidade as contradições e as limitações dessas ciências. E mais: sabia que na origem da construção de cada uma delas, a maioria tinha nomes judeus: Freud, Reich, Rank, Langer, Eitingon, Stekel, Boehm, Kemper, Federn… Curiosa e ironicamente, na NOVACAP e na construção de Brasília acontecia algo semelhante ao ocorrido na construcão da psicanálise, fato que, inconscientemente, pode até ter ateado fogo em seus transtornos persecutórios. Na primeira diretoria da NOVACAP, a diretoria que o contratou, havia um Weinberg, um Israel e um Moses, sem falar dos Sakkis, Zaks, Vitran, Zettel, Kaufmann, Fainbaum, Tandeta e outros que já compunham a ainda pequena comunidade israelita brasiliense. Seu incômodo referente aos cânones psiquiátricos sobre as doenças mentais, reaparece no texto “As utopias do judeu Buber”.

“Ao compreender que o pai pode ser um idiota, a mãe uma débil mental, os irmãos uns canalhas refinados, o marido um fresco enrustido, e a mulher uma galinha em potencial, sem cacarejar, muita gente poderia economizar dinheiro, que é coisa bem diferente de capital.”[4]

- Um pai idiota e uma mãe débil mental… Blasfemou! E blasfemar contra esses dois personagens, por mais crápulas que sejam ou que tenham sido, sem ter que pagar um alto preço por isso, só mesmo por milagre… Os cinco anos que passou enterrado aqui, nesta cova de indigentes, longe dos sóbrios cemitérios judeus, talvez tenha sido a forma de punição a que foi submetido.
- Que esse anarco-surrealista fique um bom tempo enterrado ao lado dos gentios, para aprender a viver… Teria vociferado algum rabino radical… Uma espécie de pedagogia de sobrevivência, algo como o que pregava Adorno: “Pensar de tal maneira que Auschwitz não volte a se repetir…”


[1] Verde, M.L Obsessões temáticas: uma leitura da obra de Samuel Rawet, tese de mestrado, UnB, Brasilia DF, Outubro de 1989.
[2] Rawet, S. Consciencia e valor, Orfeu, pp, 23,24, Rio de Janeiro, 1969
[3] Rawet, S. Consciência e valor, idem, p.10
[4] Rawet, S. Angustia e conhecimento, idem, pp. 9,10

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