Parte IV


Todo mundo sabe que quando elegemos um tema para pesquisa, passamos a tropeçar nele compulsivamente. A casa do professor Cassiano não é uma casa, é uma biblioteca, um arquivo, um reduto de conhecimento. Saí de lá com cinco preciosidades rawetianas sob o braço, duas delas, com dedicatórias do próprio Rawet. Sua letra tem os movimentos e os alongamentos da letra dos comerciantes. Na quarta capa de Angústia e Conhecimento, uma foto de 12 por nove cm, onde aparece um Rawet visivelmente semita e intelectual. Uma barbicha de rabino, os cabelos brancos, óculos pesados, a veia esquerda do pescoço um pouco mais visível do que o normal, camisa branca e um casaco qualquer. É o primeiro contato visual que tenho com o autor de Contos do Imigrante, com o morador tão ilustre como invisível desta cidade de burocratas e de espertalhões… Um homem de números, mas também de palavras:

“Pela palavra manifesto meu ódio, meu amor, minha agressividade, minha culpa, meu remorso. Pela palavra que julgo ouvir dos outros manifesto apenas minha afetividade, e ignoro, na verdade, que eu dirijo a palavra a mim, através do outro.”[1]

Tudo é sustentado por ângulos! Tudo é sustentado por ângulos! Quem costuma caminhar por esta cidade, já deve ter cruzado mais de uma vez com um ex-aluno de física da Unb que pirou, e que agora, envolto num cobertor imundo, desfila pelos lugares mais inusitados, gritando esta frase que, no fundo, traduz uma verdade: tudo é sustentado por ângulos! Brasília manicômio! Cidade onde, por debaixo das máscaras dos gestores e por detrás do espetáculo estatal, germina uma semente de maldição e de aniquilamento…
Baixinho, narigudo, os olhos ameaçadores do iconoclasta… A marcha aparentemente inocente do homem perturbado… Homem ora deprimido e ora alucinado que, refém de seus abismos inconscientes - lembrando Gengenbach -, parecia estar sempre com um pé no inferno e outro em Jerusalém. Assim os noctívagos brasiliense descrevem o Rawet dos anos terminais. O homem que calculava. O Malba Tahan do Distrito Federal. Colega de Joaquim Cardozo e de Athos Bulcão, todos funcionários subalternos de Oscar Niemayer Soares Filho. 
- O Rawet? Ah, quantas vezes cruzei com ele na noite… Seu lugar preferido era a quadra do Hotel Nacional, onde ficava horas caminhando em círculo, como um cão raivoso, a cabeça baixa, resmungando e insistindo na idéia de que estava sendo perseguido pela comunidade judaica… No meio dos resmungões, parecia estar convencendo alguém de que, ao invés de deitar com uma mulher, era preferível masturbar-se. Por pouco não chegou ao extremo que a história imputa ao velho Diógenes. Um dia cheguei a indagar-lhe sobre a possibilidade de, como engenheiro, fazer-me o projeto de um templo… Quando ouviu a palavra templo, desinteressou-se de imediato… Acho que não acreditava em Deus… devia ser ateu…

“… Preferiria acreditar mais num poeta satânico que pinta os cabelos de verde e sai à rua com uma tartaruga porque gosta de ter os cabelos verdes e não vê motivo para preferir o cão ou gato a elefante ou cará-cará, preferiria acreditar mais nele por isso do que por uma ação de reação.”[2]

- A última vez que o vi – continua relatando o vendedor da noite -, foi ali na quadra da antiga sede da Folha de São Paulo. Devia ser umas onze da noite. Estava babando, furioso, cuspiu em minha direção, ameaçou-me com os olhos… Fugi… Nessa noite Rawet estaria resmungando uma frase que está no seu texto Abama:

“… O homem que não desenvolve suas qualidades é um alienado…”[3]

Brasília ainda sem memória! A lua cheia levita por dentro da escuridão, meninos de rua vão escolhendo as paredes onde repousar seus pescoços desnutridos… cortinas fechadas por sonâmbulos, silêncios, o calor que tenta sufocar os horrores do mundo…
Bem que o nome de Rawet poderia ter sido lembrado com mais freqüência. Bem que os jornais poderiam dizer dele alguma coisa, os escritores de turno evocar, de vez em quando, mesmo que seja a sua insanidade. Mas não. Pesa sobre sua obra e sobre sua vida um silêncio quase vil. O narcisismo epidêmico impede a consciência de que Brasília deixou escapar por entre os dedos o mais admirável de seus pensadores…

“Só, num domingo, numa superquadra de Brasília, meditando, por necessidade sobre o Universo Auditivo, sem ter idéia precisa do que seja, me vejo arrebanhado da divagação por uma frase de Lima Barreto: no mundo não há certezas, nem mesmo em geometria.”[4]

Por todos os lados ouviam-se cochichos sobre aquele judeu que pouco falava e para quem – ao contrário de Rousseau - o homem não era naturalmente bom. A crítica advinda dos plantonistas bem informados assegurava que se tivesse lançado sua obra nos EEUU ou na Europa, teria sido reconhecido como Grombrowicz ou como Borges… Que sua dialética não devia nada à de Spinoza, que o futuro lhe faria o justo reconhecimento etc. Reconhecimento! Quando, afinal, poderemos livrar-nos dessa obsessão pelo reconhecimento? Até quando esse frenesi ilusório seguirá ocultando todas as nossas tolas e secretas misérias? Indiferente a todos os tipos de vaidades e de bobagens, Rawet, quase anônimo, enfiado nas salas da administração pública de Sobradinho, no meio de barnabés entediados, devia buscar sua salvação diária edificando idéias e maldições:

“… Como se um imenso grito estivesse prestes a ser ouvido. De humilhação. De cansaço. De aridez. De dor (…) Acompanhava a sucessão dos dias como se uma parede gigantesca se erguesse à frente, tudo era ação, sem subterfúgios nem reticências, as coisas eram coisas, os objetos tinham um só nome, e encaravam o lado áspero, a moeda de uma só face, com a fria e crua visão dos que precisam se iludir…”[5]


[1] Rawet, S. Alienação e realidade, idem, p.27
[2] Rawet, S. Alienação e Realidade, idem, p. 93.
[3] Rawet, S. Abama, Edições GRD, p.27, Rio de Janeiro, 1964.
[4] Rawet, S. Angústia e Conhecimento, idem, p.14
[5] Rawet, S. Abama, idem, p.49.

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