Parte V


- Alô é do hospital psiquiátrico?
- Sim, pode falar…
- Estou pesquisando a vida de um escritor brasiliense, que ficou internado nesse hospital por diversas vezes, preciso saber como posso ter acesso ao seu prontuário…
- Pois não, vou passá-lo para o arquivo de emergência e o senhor fala lá com os enfermeiros. Se ninguém atender, é melhor ligar outro dia, pois hoje está acontecendo aqui uma festa para as crianças, e quase ninguém está em suas salas… Vamos tentar…
Esquizofrenia! É quase impossível pronunciar esta palavra, neste contexto, sem lembrar Artaud, Nietzsche, Van Gogh e até o próprio Kafka:

“Terminei ontem o artigo Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê…”[1]

Psicose maníaco-depressiva…
Bordeline… Neurose de angústia… Idéias persecutórias…etc, etc…
Palavras… palavras… palavras… Todas as dores imagináveis instaladas nesses signos frívolos e num lugar ainda nem sequer identificado… (diante do teatro político, das gravatinhas, das tapinhas nas costas, das contas secretas e dos camaleões de turno) como pronunciar um destes chavões sem envergonhar-se e sem ter consciência de estar eternizando uma fraude social? As periferias de Brasília, o entorno, as circunvizinhanças do Distrito Federal estão se transformando ou já são um manicômio disfarçado, cruel e nunca mencionado, nem pela polícia, nem pelos professores, nem pelos sanitaristas, nem pelos políticos, um manicômio que vem engolindo silenciosamente a pobreza, a ingenuidade e a plebe em geral. Cada casa e cada família tem seus loucos, seus delinqüentes, seus doentes crônicos, seus desempregados… e, basicamente, sua desesperança.
Alô… é do Hospital Psiquiátrico?
- Sim, pode falar…
É sobre o prontuário do Senhor Rawet. Liguei ontem… lembra?
- Ah… sim, ligue para o Serviço Social… mas não hoje, porque está todo mundo em greve…
- Porra… de novo…! Ontem estava todo mundo comemorando o dia das crianças, hoje é greve… e os loucos, como ficam os loucos nessas ocasiões?
- Ué… ficam na deles, né! Louco é louco! Nós também temos nossas necessidades básicas, não é. Temos que correr atrás do nosso prejuízo! 2000 dias sem aumento de salário, num país desses, não é brincadeira né…
Desligo. Imagino o Rawet em surto, com o diabo na pele, maníaco, em pé na sala de espera, ao lado de um homem do corpo de bombeiros, que lhe diz bobagens carolas…
- Fica calmo engenheiro, que isso passa. A médica vai dar-lhe uma injeçãozinha e o senhor logo ficará bom…
Trifluoperazina, Prozac, Aropax, Daforin, Deprax e outras mil merdas sintetizadas nos laboratórios da Holanda ou da Suíça, tudo em doses cavalares, supostamente para harmonizar no sujeito o Id, o Ego e o Superego, da segunda tópica freudiana… O desejo, talvez nem seja aquilo que falta, mas aquilo que está ausente… Os olhos já sem lágrimas parecem duas sementes estéreis. Nada pode consolar um homem que se aventura pelas veredas da insanidade… Muito menos aquele que se embrenha pelas sendas do suicídio… Por mais cachaça que se introduza nas artérias, não se consegue dissimular a derrota de estar vivo. Tanto no sul como no norte dos complexos, sempre a mesma baleia branca que espreita os homens, com sua imensa boca aberta… E atenção: porque o manicômio pode ser um simples convento laico…
- Salve-me… salve-me doutor!
Os pés calejados de tantas voltas ao redor do Hotel Nacional e de si mesmo, os dedos rígidos no fundo dos bolsos ou presos à lombada de um livro de Buber. Sob o clarão de uma lua de outubro, a caminho do ambulatório, o tímido engenheiro, lutando contra os perigos internos e as ameaças externas, parecia ruminar um dos tantos textos do Bataglia e de sua psiquiatria alternativa: “O mais importante é que permaneça sempre no homem o radical, que é a única variável para que o homem melhore sempre. Se nós não tivermos essa visão futura é melhor fazermos um suicídio coletivo… Só assim poderemos mudar o mundo, senão, ficaremos sempre escravos dos ditadores, dos militares e dos médicos…”.
- Me largue… largue-me seu soldado sujo! Burocrata sujo! Judeu sujo! Gringo sujo! Eu não sou Ezra Pound… Vocês não percebem que eu não sou Ezra Pound? A doutora conhece a história de Ezra Pound? Suspeito de trair seu país foi preso em Pisa e confinado numa jaula. Suportou três semanas… A claustrofobia, a humilhação e a solidão o destruíram. Levado para os EEUU, já louco, ficou enjaulado por 14 anos no Saint Elizabeth Hospital… Eu não sou Ezra Pound, doutora…
- Nós sabemos… O senhor é o engenheiro e escritor Samuel Rawet… O autor de Abama. Fique tranqüilo, é apenas uma crise, passará quando o senhor menos esperar…
Passará quando o senhor menos esperar… Passará como, se as raízes da existência estão instaladas num terreno essencialmente insano? Uma injeção de meio metro na veia de seu braço esquerdo, esquelético, sem cor… Depois, uma palavra vaga, fútil, rotineira, intercalada com um gesto dolorosamente executivo. Horror que ia aos poucos o fazendo resignar-se: “… devo seguir meu caminho como se nada pudesse perturbar o ritmo dos passos ou a pulsação no peito. Devo me habituar a não permitir que a marca de infinitas sugestões à minha direita ou esquerda me sirva de empecilho, ou me fira com a aliciante tentação de uma solidariedade. Sou um homem alienado, preciso me convencer disso, e não ceder às injunções de uma simpatia que nem sequer foi solicitada…”[2]


[1] Rawet, S. Angústia e Conhecimento, idem, pp, 16,17
[2] Rawet, S. 10 contos escolhidos, Horizonte Editora Ltda, p.73

No comments:

Post a Comment